sexta-feira, 7 de julho de 2006

 

Ifigénia



Um lugar de ventos fortes e marés perigosas. É assim o porto grego de Áulis. É aqui que se encontram as ruínas do antigo Templo de Ártemis, a deusa da caça.
Foi em Áulis que se reuniram mil navios gregos para lançar o seu ataque a Tróia. Mas os ventos do Norte começaram a soprar, impedindo que os navios avançassem. Dia após dia, o vento soprava implacável e o Exército grego, sob o comando do rei Agamémnon, começou a dar mostras de inquietude e irritação.
Uma vidente revelou a razão daqueles ventos adversos: a deusa Ártemis estava encolerizada porque Agamémnon tinha chacinado uma das suas corças selvagens. Recusava-se a permitir que os gregos partissem a menos que Agamémnon lhe oferecesse um sacrifício terrível: a sua filha Ifigénia.
Assim, ele mandou chamar Ifigénia, afirmando que lhe tinha arranjado um casamento magnífico com Aquiles. Ela não sabia que, em vez disso, ia a caminho da morte.
A despeito das suas orações e gritos de "Meu Pai, poupai-me", os guerreiros levaram-na para o altar de sacrifício.
Eurípedes, o poeta trágico da Antiguidade, escreveu que os soldados de Atreu e todo o exército fixaram os olhos no chão, sem querer ver o derramamento do sangue da sua virgem. Não quiseram testemunhar o horror.
As tropas em silêncio reunidas numa atmosfera de tristeza. O bater dos tambores, não o rufar jubilante de uma celebração matrimonial, mas o rufar de uma marcha sombria em direcção à morte. O cortejo, uma longa fila serpenteante a caminho do pequeno bosque. A donzela, branca como um cisne, ladeada pelos soldados e sacerdotes. O rufar dos tambores pára. Ifigénia é levada, a gritar, para o altar. Estendem-na em cima da pedra fria. O pescoço níveo desnudado para a lâmina.
Talvez seja o próprio Agamémnon quem empunha a espada porque de que vale sacrificar alguém se não for o próprio a derramar o sangue sacrificial?
Agamémnon abeira-se do altar onde a sua própria filha está deitada, a carne tenra exposta a todos os olhares. Ela implora-lhe, mais uma vez, que poupe a sua vida. mas as suas súplicas são em vão.
O sacerdote agarra-a pelos cabelos, puxando a cabeça para trás a fim de expor a garganta. Por baixo da pele branca a artéria pulsa, assinalando o lugar em que a lâmina deve cortar.
Agamémnon mantém-se ao lado da filha, baixando o olhar para o rosto que ama. O seu sangue corre nas veias dela. Nos seus olhos vê os seus próprios olhos. Ao cortar a sua garganta estará a cortar a sua própria carne.



Ergue a espada. Os soldados permanecem em silêncio, como estátuas entre as árvores do bosque sagrado. Vê-se o fremir da pulsação no pescoço da jovem.
Ártemis exige o sacrifício. Agamémnon tem de cumprir.
Encosta a lâmina ao pescoço da filha fazendo pressão, golpeando em profundidade. O sangue começa a esguichar como que de um fonte, salpicando o rosto dele com gotas quentes.
Ifigénia ainda não morreu, os olhos revirados em horror enquanto o sangue jorra do seu pescoço. Aquando das derradeiras pulsações do coração, Ifigénia olha para o firmamento que escurece, sentindo a calidez do próprio sangue que esguichou para a sua face.
Os Antigos dizem que quase imediatamente o vento Norte deixou de soprar. Ártemis estava satisfeita.
Por fim, os navios gregos fizeram-se ao mar, os exércitos combateram e Tróia caiu.
No contexto desse derramamento de sangue de proporções incomensuráveis, o sacrifício de uma jovem virgem não tem o mínimo significado.
Mas quando penso na Guerra de Tróia; o que ocorre ao meu pensamento não é o cavalo de madeira, nem o entrechocar de espadas, nem os mil navios negros com as suas velas desfraldadas. Não. É a imagem do corpo de Ifigénia, exangue e mostrando a palidez da morte, com o pai ao seu lado a empunhar a espada ensanguentada.
O nobre Agamémnon com lágrimas nos olhos...


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